segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O careca do hospital

Ele devia ter uns 17 anos, ou 21 no máximo. Media uns 1.78m, era bem magro, mas bem firme também. Não dava para ouvir a sua voz, mas algo me dizia que era forte e segura, como se nada o abalasse. 
Na fila para fazer exame médico ninguém é muito feliz ou confiante. É difícil ter as duas características quando se está em jejum e prestes a receber uma agulhada. Ele tava acompanhado do pai que parecia menos confiante que o jovem careca. Os dois aparentavam cansaço, mas estavam com uma cara de que enfrentariam uma guera inteira...
Eu estava lá há uns 40 minutos. Para uma garota de 16 anos, 40 minutos é o tempo de uma vida e não pode ser desperdiçada vendo Bob Esponja na tevê da sala de espera. Naquela época eu tinha ainda muito forte uma mania que ainda preservo: imaginar a vida das pessoas, seus nomes, suas idades, profissões e sonhos. E algo me dizia que o careca seria um bom personagem. 
Fixei meus olhos de forma contida, para que ninguém ali achasse que o meu olhar não fosse nada além de profissional/acadêmico, respirei fundo, e o chamaram para entrar na sala de exame.

Ele tinha chegado depois de mim e naquele hospital só havia três opções para entrar na lista de prioridades: grávidas, idosos e pacientes com câncer.
Era moda os adolescentes da época usar cabelos raspados. Tinha algo de jogadores de futebol ou algo do tipo, mas naquele caso não era moda e me custava acreditar nisso.
Fiquei parada uns minutos, constrangida por não ter pensado que poderia ser uma possibilidade. Chamaram meu nome e quando eu entrei na sala de exames o careca saiu. E me olhou como se eu fosse uma de suas personagens e como se ele soubesse da minha vida, dos meus sonhos e do que eu queria como profissão. Olhou forte como se nos conhecêssemos, como se me dissesse: "vai lá! É só uma agulhazinha, não vais nem sentir". E foi embora.

Aquela imagem ficou gravada na minha cabeça e pensei que seria porque pela primeira vez via alguém da minha idade lutando por algo tão sério e doloroso. Imaginei que isso logo ia passar e que novos personagens viriam.

De fato vieram.

Tempos depois, um ano talvez, um grupo de amigos foi almoçar na minha casa. Era um domingo. Para ninguém ter trabalho decidimos ir na churrascaria próxima a minha casa comprar tudo, levar para lá e fingirmos pra nós mesmos que eramos adultos que sabíamos cuidar da nossa alimentação. 
Entramos. Pedimos. E dois amigos ficaram encarregados de esperar lá dentro enquanto a turma bagunçava lá fora. Como demorava mais do que o costume decidi entrar pra ver o que estava acontecendo.
"Nenhum problema com o nosso pedido não, tem muita gente mesmo", disse o amigo. "Mas aquele cara lá está passando mal, acho que é de fome".



Ele continuava careca. E pelo "passar mal" deduzi que faziam poucos dias da última sessão de quimioterapia. O pai o apoiava até sentar e uma garçonete o abanava. A cidade é naturalmente quente, mas naquele dia não tava um calor infernal. A cena me arrepiou e doeu até os ossos. Naquele domingo eu senti alívio por ele estar vivo e um desespero por ele ainda está doente.
Respirei fundo. Sentei na cadeira pra esperar e ele me olhou exatamente no momento em que eu o olhava. Ninguém ficou constrangido. Ninguém virou o rosto "por vergonha" de está olhando um para o outro ao mesmo tempo. Era apenas um sentimento mútuo de companheirismo velado entre dois estranhos que nunca trocaram uma palavra sequer.

Já se passaram uns sete anos desde a última vez que eu o vi e desde então não tenho notícias suas. Mudei de cidade e isso não facilita os encontros aleatórios. Não sei se o cabelo dele cresceu, se a pele ficou mais morena. Não sei se casou, se teve filhos, se conseguiu terminar a faculdade e qual ele escolheu. Não sei se está feliz, se arrumou um emprego legal, se foi para o último Rock in Rio e postou foto virado para o Palco Mundo. Eu só torço para que ele esteja bem, mesmo que eu não saiba seu nome, suas preferências e nunca tenha conseguido lhe transformar num dos meus personagens anônimos mesmo eu não o tendo conhecido.


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