Eu tinha três anos quando me mudei para casa onde moro hoje.
A poucos metros tem uma praça e desde aquela época um monte de criança morava
lá. Dentre as crianças moradoras tinha o Mário.
Dizem que o Mário chegou na praça com 6 anos de idade.
Ninguém sabe como nem o porquê foi pra lá. Mário, assim como os outros meninos
da praça, cheirava cola de sapateiro pra não sentir fome, sede, frio e, quem
sabe, saudades.
Minha mãe dizia a mim e ao meu irmão que deveríamos cumprimentar
todas as crianças da praça. 1º elas eram crianças como nós e precisavam ser
tratadas como tais; 2º era quase uma lei da sobrevivência: fale com eles e eles
te defenderão. Na loja de papelaria e presentes que ela mantinha tínhamos uma
vida quase igual a deles: eles iam para lá beber a nossa água, comer o nosso
lanche e ganhar brinquedos, de vez em quando e quando mereciam (como nós).
O Mário era diferente. Por anos minha mãe tentou convencê-lo
de ser nosso irmão legitimo, morar na nossa casa, estudar na nossa escola e ter
as mesmas roupas que o meu irmão. Mas o Mário não aceitou.
Ninguém entendia os motivos. Mário era amado como
filho/irmão e ele retribuía o afeto, mas não queria sair do asfalto. Mário sentiu
medo do preconceito, não o da família que o queria, mas dos outros.
Meses atrás entrei no ônibus para ir para o trabalho.
Esbaforida, sentei no primeiro banco e nem observei quem me observava. As
pessoas olhavam estranho pro cara que fez: Psiiiiiiiu, Maaaaaaaari!
Gritei quase como uma reação instantânea: Mário! Quanto tempo!!
O olhar preconceituoso que fixava no meu quase irmão virou
também pra mim. Era como se eu lesse o pensamento das pessoas que gritava: “Nossa,
deve ser drogada”. “Falar com um cara assim?” “Credo o que deu nela?!”
Mário e eu sentimos vergonha pelo preconceito alheio. A
vergonha foi tanta que só deu para trocarmos as frases básicas: “Como você tá?”
“Bem e você?” “Nunca mais vi teu irmão, ele tá morando contigo ainda?” “Não...
Tu tá lá no Dom Pedro ainda?” “Sim. Indo pra casa do meu pai no interior por
uns dias”
Ficamos com vergonha dos outros.
Semana passada o reencontrei na praça. No nosso lanche
favorito. Sentado numa mesa meio distante. Cheguei, sentei, conversei um pouco.
Mário queria saber quem era esse meu “novo” namorado e se ele me tratava bem.
Tinha ouvido minha mãe falar. Pedi pra ele vir aqui em casa, almoçar com a
gente qualquer dia. Mário disse que vinha, mas eu sei que não vem. O
preconceito e a vergonha por isso não deixou e nunca deixará ele vir.
Mário foi condenado sem querer. E nós fomos penalizados com
menos um irmão e a tal sociedade com menos um Mário.
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